Uma das oportunidades que a disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso II me proporcionou foi de conhecer algumas histórias sobre os trabalhadores de uma das mais antigas profissões existentes. Confira a reportagem que eu fiz sobre as Olarias em São Borja.
Sábado à tarde saio à procura de alguma olaria em São Borja. Pego a minha mochila e a câmera fotográfica e vou à busca de algum oleiro trabalhador. Sigo o rumo da Avenida Julio Trois e numa oficina pergunto para o mecânico se ele tem conhecimento de alguma olaria por perto. Depois das coordenadas, encontro a placa do Aeroporto e sigo a reta de asfalto. Logo mais a frente já consigo observar os tijolos que montam o forno. São mais ou menos cinco e quinze da tarde e aquele sol já não aquece com tanta vontade e o frio começa a entrar por baixo do meu casaco.
Quatro homens davam inicio a uma construção. De uma maneira tímida, eu chego devagar e olho pros lados esperando vir alguém na minha direção e perguntar o que eu procurava. Cinco minutos depois um homem com uma aparência séria e comprometida percebe minha presença naquele local. Eu sigo atento, querendo descobrir cada novidade do lugar. No silêncio, escuto os passos de Claudemir Carpes, que finalmente dá resposta as minhas dúvidas. Trabalhando um ano e meio com o irmão Josué Silva Carpes, dono da olaria há vinte anos, peço a ele que mostre como é o processo de uma das mais antigas produções: a fabricação do tijolo de cancha.
Claudemir Carpes |
Composto por terra, estercos de boi ou cavalo, casca de arroz ou serragem de madeira, a mistura é para facilitar a queima dos tijolos. Antigamente o barro era sovado por cascos de animais, hoje é usado um cilindro na vertical de madeira ou metal chamado malacate. Puxado por um cavalo que gira em um eixo de 360 graus, o malacate sova o barro para depois ser transportado por carrinhos de mão até a mesa do molde. Com as mãos, o oleiro coloca o barro numa forma, tira o excesso e leva ao solo capinado e aplainado para secar no sol. Aí a origem do nome tijolo de cancha. Depois de secos, vários são empilhados formando grandes fornos. O segredo de um bom tijolo é na hora da queima.
Forno queimando os tijolos |
É preciso estar atento pra não passar do ponto. Dependendo da quantidade da mescla que se faz, além do estado de umidade, a queima pode durar de vinte a trinta horas. É possível produzir por dia em torno de dois mil tijolos. O processo inteiro até a finalização demora aproximadamente trinta dias dependendo das condições do clima. No verão em quatro dias de sol o tijolo tem condições de ir pro fogo, no inverno demora mais. Não rende muito porque a chuva atrapalha. Há cinqüenta anos o pai de Claudemir, Ismail Carpes, trabalha com essa atividade.
Desde pequeno o pai ensinou os seis irmãos homens a trabalhar com tijolo. Natural de São Borja, Claudemir conta que já trabalhou numa metalúrgica em Bento Gonçalves e quis abandonar o serviço: “Eu abandonei a metalúrgica e decidi fazer meu tijolo. Andava angustiado, porque eu me criei fazendo isso”. Evitando despesas com mão-de-obra, é ele mesmo quem faz o serviço de cortar a lenha. Peço licença para fotografar o outro lado da olaria, quando volto não encontro mais ele por ali. Ele estava de volta à construção. Guardo a máquina fotográfica na mochila e sigo atrás de outra olaria por perto.
Numa casa de esquina, nas proximidades do antigo aeroporto conheci Ismail Dorneles Espíndola, de 82 anos. O senhor me convidou para entrar na casa que mora com a esposa e o neto. Há quarenta anos exercendo essa atividade, durante toda sua vida em Itaqui, trabalhou para fora e depois veio para São Borja. Depois de ter passado por vários serviços, não se adaptando, resolveu abrir sua própria olaria. Numa conversa bem à vontade, no calor da casa aquecida pelo fogão a lenha, o senhor conta que aprendeu a arte de fazer tijolos na prática com outros oleiros.
Ismail Espíndola |
Atualmente ele trabalha com o genro e todos os seus 13 filhos se criaram trabalhando em olaria. Apesar de ser um serviço pesado, ele diz que gosta do que faz: “Gosto de trabalhar, os guris querem que eu venda e vá embora, mas eu acostumei a trabalhar aqui.” Com a possibilidade das olarias terem fim, por não ser um serviço legalizado pela falta de união da categoria, ninguém quer trabalhar sem carteira assinada. “Se a gente legalizar, trabalhamos mais seguro pra mim e pra pessoa que trabalha comigo”.
Malacate de ferro |
Produzindo em média 25 mil tijolos por mês, o senhor Ismail lucra em torno de 1. 500 em cada forno. Todo o material produzido é entregue a engenheiros. Peço a ele que me leve à olaria que fica praticamente ao lado de sua casa. Num terreno privilegiado pela natureza, ele me mostra os tijolos que estão secando e o que restou do ultimo forno. No galpão onde os tijolos são moldados, os carrinhos de madeira para o transporte do barro me chamam a atenção. A forma rústica como esse trabalhado ainda é feito e permanece nos dias de hoje é uma riqueza que não se perdeu. O sol já está se pondo ao fundo da olaria. Está na hora de ir para casa.
No dia seguinte passando a Pirahy alimentos volto a minha saga. O chão batido e a paisagem da campanha me seguem até a pequena olaria do seu Olavo Lima. O são-borjense de 48 anos inteligente e muito camarada me convida a entrar no seu local de trabalho. Com a face suada e cansada, mas sempre em prontidão para qualquer resposta, há somente cinco anos ele também vive no local. Morando sozinho em uma casa de madeira simples e pequena, a maneira como ele sobrevive se equipara ao serviço dos tijolos de cancha. A moda antiga, sem energia elétrica, ele já está acostumado. ”Pra mim não é estranho porque trabalhei pra fora em lavoura e já sei como é isso”. Sempre com o sorriso estampado no rosto, ele conta que entre idas e vindas já trabalhou como vendedor, pedreiro e até locutor de rádio. “Eu trabalhava na Butuí, abria a programação de manhã cedo. Eu era um líder comunitário, então a associação do bairro teve o direito de ter um programa, aí eu fui pro rádio”. Durante quatro anos ele trabalhou e decidiu ir embora porque começou a enjoar da rotina. Aprendeu a fazer os tijolos com outros oleiros e sem saber direito começou a montar seu próprio negócio.
Ao contrário da maioria dos oleiros que exercem essa atividade de geração em geração, seu Olavo é o único da família. Separado, pai de duas filhas, ele ganha apesar dos gastos com mão-de-obra, 1.800 brutos por cada forno. Um dos motivos de trabalhar com essa forma artesanal é pela questão do investimento não ser alto. Se tivesse outra forma de capital, ele não trabalharia com isso. Apesar da rotina, seu Olavo diz que gosta do trabalho: “É cansativo, mas eu gosto desse trabalho, eu canso, mas não mental. Eu não trabalho com máquina, não tenho risco de lesão, então quando eu entrego tijolo, pego meu dinheiro na hora”.
Olavo Lima |
Existe uma associação dos oleiros em São Borja que não é atuante pois o pessoal é desunido, cada um trabalha por si. Um dos impedimentos é a lei ambiental, pois para legalizar uma olaria é preciso de um projeto ambiental e a maioria usa terra devoluta. Olavo comprou o direito de outra pessoa que morava no terreno, mas já tem planos para se mudar devido às enchentes que podem estragar a produção. O oleiro camarada estudou até o primeiro grau e as suas experiências ao longo da vida tornaram o homem que ele é hoje em dia. Aventureiro, ele sempre gostou de mudanças. Já conheceu 49 cidades.
Ele me convidou a conhecer as outras sete olarias que existem ali perto. Uma delas era diferente. De longe observo duas figuras femininas. Um trabalho considerado dos homens perde o posto por duas mulheres dispostas e comprometidas com o que fazem. Alessandra trabalha há três anos no local. Ela, o esposo e a mãe dão sustento à olaria que era do seu pai há 14 anos. “A gente faz tudo, desde o informe, até entregar”. A moça diz que o trabalho não é difícil e que prefere fazer os dois mil tijolos a trabalhar como doméstica. No começo cortava apenas 300 tijolos. Desde pequena sempre ajudando seu pai, foi pegando gosto e hoje é a única filha que gosta de trabalhar. Acordando todos os dias às seis da manhã, Alessandra aproveita o movimento para se exercitar.
Maria Julia, mãe de Alessandra, trabalha na olaria há 24 anos e aprendeu com o marido. A opção de trabalho foi uma escolha por não gostar de ser mandada. “Eu me mando, se sair ruim, a Alessandra que reclama”. Ao contrário da filha, ela só lida com o malacate, não gosta de cortar o tijolo. Ganhando bem mais que uma doméstica é só ter vontade de fazer, que sai bem feito. Parecido com uma argila, o barro se torna uma diversão. Com o forno aceso, os tijolos estão no processo da queima. Mãe e filha provam que as mulheres podem fazer serviços ditos apenas para homens muitas vezes melhor que eles. Seu Olavo cai em gargalhada, confirmando a situação.
Mãe e filha |
Voltamos para sua olaria e na companhia de dois amigos ele lê um pequeno texto sobre o tijolo. Quando trabalhava na rádio pediram para ler no ar. O título nada mais sugestivo: O tijolo. Uma homenagem ao dia do trabalhador. Um trecho do texto dizia: “O que importa é sermos continuadores de sua obra na construção do reino de Deus. Depende de você ser tijolo, reboco ou pintura”. Seu Olavo e todas essas famílias continuam a sua obra de construir e ser um tijolo melhor a cada dia que passa. Hoje existem na cidade aproximadamente 40 olarias que geram renda para mais ou menos 150 operários.
Olavo Lima tirando o barro para o molde |
Essa é uma das oportunidades que o jornalismo proporciona. Conhecer pessoas e histórias. Agradeço ao Humberto Begot pelas fotos. Até a próxima!